O prolongado trimmmmmm do despertador a fez abandonar os sonhos e levantar-se de um salto, para o novo dia que se infiltrava pelas cortinas do quarto. As primas também já se alternavam no vestir-se, tomar o café da manhã e verificar se a tia havia passado bem à noite. Em minutos já estavam em seus respectivos coletivos a caminho do trabalho.
No percurso, entre o subúrbio e o bairro mais chique, caro e fotografado da cidade, a prima ia contando sobre os patrões, sobre o funcionamento do apartamento, o tipo de comida que gostavam, quantas pessoas haviam para serem alimentadas, as manias de um, as dificuldades de outros, sobre as outras empregadas, motorista, as normas do condomínio, enfim, um verdadeiro breviário para que ela se inteirasse o mais rapidamente possível sobre o serviço. Ela ouvia atenta, ainda que algumas vezes seu olhar se desviava para fora da condução e admirava paisagens, reconhecia praças e monumentos que já havia visto em telejornais ou programas de TV. A grande cidade a encantava e, de alguma forma inexplicável, sabia que aquele era o seu verdadeiro lugar.
Quando abriram a porta de serviço do apartamento, ela ainda estava boquiaberta com o tamanho e luxo do edifício. Os porteiros uniformizados, os seguranças vestidos como naqueles filmes que ela assistia lá no interior. A quantidade enorme de câmeras vigiando todos os movimentos das pessoas que lá moravam e dos visitantes. Havia deixado uma cópia de sua carteira de identidade na portaria principal, pois, ninguém estranho era admitido ao interior do prédio se não o fizesse. Mas, se o tamanho e a beleza do edifício a deixara boquiaberta, o efeito completou-se ao ver o tamanho da cozinha e a maneira que era equipada. Ela tinha a impressão de ter entrado no lugar errado, talvez no cenário de um famoso programa matutino da TV, onde a apresentadora faz doublé de culinarista. Tudo era branco demais, com um imenso fogão em aço escovado que combinava com as 2 geladeiras, o forno de micro-ondas, a bancada de trabalho, a máquina de lavar pratos, e mais uma parafernália que ela nem conseguia identificar.
Rapidamente vestiu o uniforme que a prima lhe cedeu e em minutos era apresentada à dona da casa, uma senhora ainda bastante jovem, de olhar triste, que lhe fez diversas perguntas e contou-lhe alguma coisa básica sobre a rotina da casa. Em seguida, pediu a ela que fizesse um levantamento do que havia na grande dispensa, dentro das geladeiras e freezers e preparasse uma lista com o que seria necessário comprar. Mas antes, pediu que preparasse o café da manhã, pois os filhos já estavam saindo para a faculdade. Rapidamente ela preparou umas panquequinhas típicas do pessoal da fazenda, que serviu com mel e geléias, acompanhadas de um suco de laranja e, como ninguém havia comprado, ainda, o pão, fez torradas cobertas de queijo ralado derretido e, junto com o café e leite, serviu a mesa.
A prima veio eufórica, minutos depois, dizer-lhe que o pessoal da casa “amou” o que ela havia preparado! Que bom, pensou, enquanto preparava a lista de compras. Foi então a vez dela conhecer melhor os demais funcionários da casa, enquanto tomavam o seu café da manhã e não pode deixar de ficar impressionada com um rapaz de terno e olhar risonho, como no sonho da noite anterior, que se apresentou como o motorista da família. Trocaram poucas palavras e ela sentiu-se enrubescer.
Chegaram, então, os 4 seguranças que trabalhavam para os patrões e que acompanhariam, num outro carro, os filhos que estavam saindo para a faculdade. O tempo todo falavam em seus fones, trocando informações pertinentes ao trânsito, à melhor rota. Uma verdadeira operação de guerra. Quando saíram e sobrou um tempinho, a prima correu para contar-lhe que o rapaz, filho do casal, havia, há alguns anos, sido sequestrado e que aquela experiência tinha sido completamente transformadora na vida da família. O rapaz sofria, até hoje, de um profundo trauma e, tanto os pais como os filhos, passaram a viver praticamente enclausurados, dentro de uma gaiola dourada. Não se locomoviam, de forma alguma, pela cidade, se não fossem acompanhados pelos seguranças. Ninguém trabalhava no apartamento que não fosse conhecido, tivesse uma ficha policial impecável e viesse com diversas recomendações de fontes que eles confiassem.
Quando a patroa chamou-a para levar café puro ao escritório, ela teve oportunidade de conhecer uma parte do apartamento. Nunca, nem nas novelas de TV, nem nas revistas que tivera a oportunidade de folhear, vira nada tão bonito, tão bem arrumado, tão harmonioso, com uma aparência de bom gosto e riqueza. Ela podia ver as palavras luxo, poder, dinheiro, qualidade escritas em cada um dos móveis, quadro, enfeites, tapetes, lustres que decoravam aquele lugar. Tudo lindo demais, impecável demais. Então, enquanto servia o café para a senhora, foi respondendo às perguntas básicas sobre quem era, de onde viera, o real grau de parentesco com a tia, por que havia vindo morar num lugar tão longe de suas raízes, o que ela pretendia, se iria ficar ou se era apenas uma temporada, etc e tal. Terminado o questionário, que fora interrompido duas ou três vezes por telefonemas dados pela patroa para os celulares dos filhos e dos seguranças para saber se estava tudo bem, ela falou do salário, de horários e obrigações e de outras coisas básicas sobre o trabalho e avisou que teria 5 amigas para almoçar, mais tarde.
De volta à cozinha ela aguardou o motorista chegar para ir ao supermercado fazer as compras, enquanto começava a preparar o que era possível com aquilo que tinha às mãos no momento. Sua criatividade a ajudou, num instante, a montar um cardápio saboroso e ao mesmo tempo com um misto de sofisticação e exotismo. Sabia que a primeira impressão é normalmente aquela que permanece e ela estava completamente empenhada em impressionar e cativar seus patrões.
Compras feitas, voltou sentada ao lado do motorista, que também crivou-a de perguntas, querendo saber o que ela fazia quando morava no sítio, como era a vida por lá, como se divertia, se tinha namorado, quanto tempo iria ficar na cidade, se pretendia continuar morando com a tia, e tudo o mais que as pessoas fazem para puxarem assunto e saberem das outras rapidamente. O tempo todo, porém, estava atento se os vidros e as portas do carro (blindado, ele contara) estavam bem travados e, a cada parada numa luz vermelha, ele ficava tenso observando o trânsito e os transeuntes. Ela perguntou-lhe o porque dessa aparente preocupação e ele disse que na cidade grande era assim mesmo, que haviam assaltos o tempo todo e que as pessoas podiam serem mortas por uma bala perdida disparada por nada. Ela endireitou-se no banco, tensa.
A dona da casa e suas amigas estavam impecavelmente vestidas e usavam lindas e vistosas jóias enquanto se serviam, com muitos elogios, da sobremesa que ela preparara. Não cansavam de elogiarem a comida servida e essa parecia ser a conversa que se alternava com os comentários sobre a violência nas ruas da cidade, da insegurança com que todos viviam, com as mudanças de hábitos que tiveram que fazer, com a falta de oportunidade de usarem e exibirem suas jóias com medo de assaltos ou sequestros. Não faltaram também, e ela ouvia enquanto servia os pratos, comentários sobre a desconfiança que pairava sobre os empregados e, inclusive, os seguranças que as serviam. Para ela, tudo aquilo parecia absurdo, pois aquelas mulheres eram evidentemente ricas, instruídas, viajadas, frequentavam a chamada “alta sociedade”, tinham dinheiro suficiente para comprarem o que quisessem e irem onde quer que sua vontade as levasse e no entanto… eram prisioneiras de sua própria condição. Acabavam tão limitadas, restritas a tantas normas de segurança, tão impedidas de irem e virem quanto qualquer outra pessoa de menores condições econômicas. Ela não conseguia entender direito essa paradoxal situação.
No final do dia, quando já estavam prontas para voltarem para casa, a patroa pagou-a pela diária (afinal ela ainda não estava empregada como cozinheira, pois esse era o serviço da tia que estava de licença) e deu-lhe mais uma quantia em agradecimento pelo belíssimo almoço que ela preparara. Enquanto entregava-lhe o dinheiro, cuja quantia deixou-a espantada, a mulher fez-lhe os maiores elogios contando o quanto as amigas haviam gostado de seus pratos, que misturavam a comida caseira do sertão com um toque muito próprio de sofisticação na combinação e preparo dos alimentos, bem como na sua caprichadíssima apresentação. E a sobremesa! Maravilhoso aquele sorvete de cupuaçu servido com beijus e natas. “Comida dos deuses!”, ela repetia. Ficou combinado que voltaria no dia seguinte e até que a tia pudesse reassumir o cargo.
Ela e a prima desceram pelo elevador rindo e se abraçando, contando as cédulas, muitas, que a patroa havia colocado em suas mãos. Ela sabia que era uma boa cozinheira, sabia que amava o que fazia, mas nunca pensara que aquele seu talento valesse tanto! Guardou o dinheiro na bolsa e despediram-se do motorista que conversava com os porteiros quando passaram pelo hall do edifício.
Aguardaram poucos minutos até que apareceu o ônibus que as levaria para o subúrbio onde moravam. Elas passaram pela roleta rindo, e procuraram espaço entre todas aquelas pessoas que se comprimiam no corredor lotado. Mas a alegria das duas era tamanha que nem isso parecia incomodar. O ônibus, num sacolejo, deu partida e arrastou-se pela noite que caía sobre a grande cidade.
Quando um 4 de Ouros aparece numa leitura de tarot, dependendo sempre da sua localização na jogada e das demais cartas que o acompanham, além da questão proposta pelo consulente, pode simbolizar um certo isolamento do Consultante que se mantém agarrado, como uma bóia salva-vidas, ao seu dinheiro, suas posses, seus bens. Pode representar que se o Consultante se esquece dos valores mais elevados daquilo que possui, ao invés de possuir o objeto é o objeto quem o possui. Pode estar representando um momento na vida do Consultante em que ele age de maneira muito rígida, com uma impressionante necessidade de estabilidade e segurança. Egoísmo, ganância e traição estão entre as possibilidades que essa carta pode significar, numa tiragem. Pode representar, também, de maneira bastante positiva, que se o Consultante passou recentemente por dificuldades financeira, por falências e concordatas, esse período já terminou. Se a pessoa ficou desempregada meses a fio, esse é um momento de virada, onde a situação certamente mudará. Se o Consulente teve algum problema de vício, e buscou ajuda e cumpriu um programa de tratamento, o 4 de Ouros pode anunciar o fato de que a pior parte dessa experiência está terminada e que agora basta disciplina e controle.
A energia do 4 de Ouros é jupiteriana e provém do pilar direito da Árvore da Vida cabalista, da esfera (sephirah) Chesed. Tudo aqui é expansivo e, até mesmo, exagerado, devendo ser utilizado unicamente quando dela se necessita e na quantidade realmente necessária, senão o desiquilíbrio se agrava. A pessoa que pode ter um carro de luxo, mas que teme sair na cidade por medo que o roubem ou que o risquem, não possui realmente o carro. O carro é que é dono do seu dono. A mulher que tem um anel de brilhantes, sempre guardado numa caixa forte de um banco, na verdade não pode dele usufruir quando e como quer. A pessoa, cujos gastos ultrapassam seus ganhos, pode falir, mesmo que esses gastos sejam para pagar por uma 2ª ou 3ª residência, pelo 4º carro de luxo, pela festa para 1.000 pessoas no casamento da filha. De que vale morar num verdadeiro palácio se passamos a considerar todas as demais pessoas como prováveis “ladrões” da nossa segurança ou estabilidade. Se não equilibrarmos os benefícios que recebemos de Chesed com alguns limites impostos por Geburah, corremos o sério risco de vivermos ricos, mas sem qualidade de vida, sem podermos ou sabermos apreciar o que temos.
Neste domingo, sob a luminosa regência solar, é ocasião que propicia meditarmos o quanto os nossos ganhos materiais nos acorrentam à obrigações que não queremos assumir, ou a uma insegurança que nos acompanha por todo o tempo. Essa carta, usada como meditação, nos faz refletir o quanto estamos, ou não, presos ao egoísmo e à suspeita. O 4 de Ouros nos convida a observar que, para termos êxito na vida, não precisamos nos apossar de nada de ninguém, pois há, no universo que habitamos, riquezas mais do que suficientes para suprirem nossas necessidades e para que todos delas compartilhem com alegria.
Tenham um ótimo e confiante domingo!
Imagem: VAUDEVILLE TAROT, por F. J. Campos
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