Raul ajeitou melhor as flores sobre o caixão. Gestos mecânicos, seu olhar que parecia ver através da madeira do esquife e atravessar as paredes da sala onde o velório, era o olhar de um cego que nada enxerga à sua frente, que, à mercê da própria sorte, procura nas trevas uma única referência para continuar.
A sala ia se enchendo com os vizinhos, os colegas de escola da filha, os parentes, os companheiros do trabalho, todos murmurando palavras, as mesmas que ele próprio tantas vezes dissera e que agora pareciam incompreensíveis.
A respiração lhe era difícil e dolorosa. O cheiro da cera derretida das velas, das flores arranjadas em coroas e buquês, o cheiro da morte daquele lugar, tudo lhe entorpecia os sentidos, confundindo o seu pensar.
A esposa, debruçada em seu ombro, chorava um choro mudo, sentido, sem movimento outro que não o das lágrimas.
Sua mulher, sua amiga, sua companheira, sua namorada, a mãe de Camila sua filhinha, agora presa naquela caixa de madeira. Havia naquele toque uma cumplicidade desesperada, como se a dor de um penetrasse no outro em busca de eco, numa cavernosa e compartilhada solidão.
A mulher que escolhera como sua parceira para a vida, agora ali, um vulto descolorido, convulso, de olhos injetados de sangue e de dor.
Essa mesma dor opressora que ele sentia e que parecia retroceder nas ondas que a memória, nos flashes de lembranças que lhe traziam de volta Camila no berçário do hospital. O primeiro banho, em casa. A maneira engraçada de articular as primeiras palavras. A festinha do aniversário. A foto com a vovó. Os presentes de Natal espalhados pela sala. A primeira ida à escola. Cantando com as coleguinhas de classe. Aprendendo a andar de bicicleta. A apresentação na escolinha de balé. A excursão da turma toda até a cachoeira. Recebendo um diploma qualquer por ter completado o curso de computação. Com as primas, fantasiada de egípcia no bloco de carnaval. A risada contagiante. O sorriso de sempre.
Alguém, talvez seu chefe no trabalho, talvez o amigo de futebol, o abraçou e murmurou um esperançoso e consolador: “Ela está num lugar melhor, esteja certo. Está melhor do que nós. Não vai passar por tudo que nós ainda teremos de sofrer. A vida continua, você vai ver.” Ele ouvia como se escutasse o som de um velho disco, riscado, repetindo uma frase à exaustão, tirando-lhe todo o significado. “Vocês são jovens, tem um filho lindo para criar e que precisa muito de vocês. Terão outros filhos…”. Não, ele não queria “outros” filhos. Queria Mariana, sua filha, aquela que estava ali no caixão. Outros filhos são outros filhos, nunca sua filha. O caçula, ali alheio a tudo, era seu filho querido, é claro. Mas ele não era Camila. Ele queria os dois.
Alguém se aproximou e, colocando-lhe a mão no ombro, disse gravemente: “Está na hora”. Sentiu que as pernas perderam a força de sustentação. o sangue parecia desaparecer de dentro de si e uma tontura turvou-lhe a visão. Um gosto amargo instalou-se em sua boca e mais e mais difícil ficava o respirar.
Pela primeira vez desde que a polícia e a diretora da escola veio avisar-lhes do “acidente fatal” que Mariana sofrera, voltou a ouvir a voz da mulher, uma voz que, baixinho, misturava lamúria e o nome da filha, num único e angustiado som.
Olhou para trás e viu a sogra segurando no colo o caçula que brincava, indiferente a tudo, desenhando o ar com os dedinhos.
Por um instante acreditou já ter vivido aquele momento, numa outra época, numa outra situação e procurou com o olhar sua velha mãe. Observou que ela também, através do lacrimoso olhar, parecia rememorar algo, como o momento em que levaram para enterrar o falecido marido. Parecia fazer tanto tempo! Ele, criança, calças curtas, assustado, a sala cheia de velas e o cheiro das flores morrendo, vendo os parentes abraçarem seus irmãos, um a um, e quando chegavam até ele repetiam: “Agora você é o chefe da família. Precisa ser forte. Precisa ter coragem e ajudar sua mãe a criar seus irmãos”. O caixão do pai sendo lacrado. Os tios carregando-o. As velas sendo apagadas. As coroas de flores amontoadas num canto. Meu Deus, há quanto tempo?
Tocou a alça do caixão sentindo-lhe a metálica frieza. Respirou fundo como que buscando uma coragem que parecia ter-se perdido para sempre. A esposa agarrou-lhe o braço. Não era mais a namorada que nele se apoiava com um olhar de paixão e de promessas, mas sua contraparte, sua sócia naquela desventura. Não havia o fogo do carinho naquele toque, mas um desesperado pedido de socorro. Olhou para a frente, enquanto caminhavam, e a vida parecia um filme remendado por um louco montador: imagens dele menino, do pai, da mãe chorando, do primeiro beijo na primeira namorada, nas noites mal dormidas cuidando da filha com febre, no nascimento do filho, Camila rindo quando ele caía, tentando ensinar-lhe a patinar, a voz neutra, profissional do policial dizendo-lhe da bala perdida que atingira sua filhinha, o desespero da mulher caindo, em câmera lenta, ao chão, o choro do caçula no quarto, a mulher… a mãe viúva… o filho…a filha…
Olhava a cidade, da janela do carro que os levava de volta para casa. As ruas, as pessoas, as árvores, as luzes dos semáforos, tudo parecia tão igual e tão diferente ao mesmo tempo. Não conseguia entender direito o que lhe parecia estranho. Ainda sentia-se como que anestesiado, onde todas as sensações se reduzem a nada, menos a dor. Olhou para trás e viu a mulher calada com o filho no colo. Seu olhar também vagava como que numa cegueira branca enquanto as mãos mecanicamente acariciavam o filho. Sabiam que agora, em casa, teriam que lidar com a ausência da menina. Camila não mais estaria lá, estudando na mesa de jantar, dançando em frente à TV, conversando com as amigas ao telefone, vindo beijá-los antes de ir dormir.
Semanas viraram meses e meses, anos.
O filho caçula já começara a ir para a escola e desenhava as primeiras letras. Quando voltava da fábrica encontrava a esposa contando-lhe das peripécias do menino e riam juntos. Às vezes comparavam alguma atitude dele com Camila. Lembravam então de algum episódio engraçado e riam um pouco, um riso saudoso e resignado. A vida demorara para parecer ter valor de continuar a ser vivida, mas o tempo, a esposa e o filho fizeram com que o vazio fosse sendo preenchido com outras emoções, com outras perspectivas e esperanças.
Olhava para a esposa enquanto ela arrumava a mesa do jantar e revia a beleza da namorada. Haviam atravessado a dor juntos. Amadureceram seu amor através da perda vivida em comunhão. Conheceram-se melhor no sofrimento. Choraram pela dor do outro. Cuidaram das suas próprias feridas medicando as do outro. O filho caçula estava ali, presente, precisando deles. Não era um substituto à filha morta. Era uma parte deles, com vida própria e que acenava com a mesma promessa de continuidade que os filhos dão.
Eram três e eram um só.
Eram uma família.
O Naipe de Copas representa, psicologicamente, os sentimentos e o elemento água. Suas cartas, no tarot, costumam representar, beleza, alegria, realização emocional e criativa, contentamento. Entretanto, como todas as cartas do tarot, elas, quando mal aspectadas (invertidas, em “casas” que representam obstáculos, problemas, dificuldades, aspectos negativos, etc, o lado “sombra” do símbolo) representam as desilusões, tristezas, decepções, frustrações, indulgências, vícios, frequentes oscilações de humor.
Imagem: Tarot, Ciro Marchetti
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